quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Aborto

Agora tenho certeza: a culpa toda foi daquele aborto a que meu pai obrigara minha mãe a cometer, temeroso que mais uma mulher se juntasse às duas filhas. Berrava pra ela: “Você é uma incompetente. Não me dá um figlio maschio, porca miséria”.

“Dançou”, como diria meu filho mais novo. Dançou bonito. A criança que ele não deixou vingar tinha um pinto.

Tendo comprovado que, afinal, minha mãe não era tão incompetente assim, resolveu tentar de novo. Mas eu gostaria que meu pai ou minha mãe, ou os dois, já que ambos tinham a mesmíssima responsabilidade, houvessem refletido sobre o que estavam fazendo quando decidiram me conceber. *

Nasci mulher.

Ele se recusou a ir à maternidade. Pensava que aquilo só podia ser castigo de Deus.

Foram anos ouvindo da boca deles: “Você só faz coisas erradas”.

Só pra contrariar, cresci. Virei uma linda mulher, um “mulherão”, como me dizem. Gostosa. Dei pra Deus e pro mundo.

Sosseguei. Casei e tive três filhos. Todos machos.

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A frase é de Laurence Sterne, in A Vida e as Opiniões do Cavaleiro Tristram Shandy, segundo a Revista Piauí, concurso literário fevereiro/09, cujo prazo perdi. Era pra escrever encaixando a frase escolhida pelos editores. Aí, pintou na cabeça esse conto, uma fantasia baseada em fatos reais.

2 comentários:

Andrea Nestrea disse...

bem legal.
e quantos casos como este, de homens que impunham às mulheres a culpa pelo sexo do filho, quando, na verdade, a designação macho e fêmea está no esperma, e não no óvulo...
gostei bastante!!!!

Eli Carlos Vieira disse...

Belo texto, mesmo.
A frase, encaixada, se perde e dilui-se naturalmente em todo o conto.
Gostei da presença do italiano.

A coisa é real, sim. O machismo é ainda real...
Mas, ainda bem, são exceções.
Assim como os são a questão de impor a virgindade à meninas, impor a heterossexualidade como aceitável e único - um padrão.
E outras coisas mais...
Beijo, Kátia.